Como me dói ouvir, principalmente de um educador, que o educando fala errado! E de uma
maneira preconceituosa não considerar a essência da língua que predomina no país afora com
suas variações.
Dá para contar facilmente a quantidade de pessoas que falam o português normatizado,
legalizado, em todos os momentos da comunicação. E se há exigência social e normatizada
para isso, não precisamos colocar em patamar inferior as normas culturais da língua falada nos
diversos espaços regionais. Cabem respeito, reconhecimento e interesse na valorização da
língua falada em cada região, pois pertence ao universo histórico e cultural.
Essa indignação gera em mim, retomar todo o processo, tanto das minhas caminhadas, no
seio de um mundo cultural caipira, caipira paulista, quanto das minhas andanças pelo país
afora em busca de colaborar com a melhoria nos índices de alfabetização. Com muita clareza,
penso que alfabetizar não é reforçar os preconceitos linguísticos, mas ampliar as formas de
comunicação de cada cidadão, para torná-lo mais cidadão.
Posso comentar sobre as falas particulares de muitas regiões brasileiras e admirar a vastidão
de elementos linguísticos, já estudados por grandes pesquisadores, dentre eles o divino
Marcos Bagno e outros professores da UnB.
Quero falar, utilizando das normas oficiais, sobre essa riqueza cultural nos campos bonitos e
verdejantes do interior paulista, onde vivi e vivo.
“Vem de lá do interior do mato”, como diz o poeta, esse falar consistente de muita
comunicação, muita prosa. O caipira se comunica com poucas palavras e muitos gestos, mas
com uma riqueza extrema de convivência e solidariedade
Ao pedido de uma informação ele responde com gestos, em que a cabeça e os braços
desenham uma redação de dados que necessitam de alguns recursos para a interpretação. Ele
basicamente fala com o corpo e esse ato é infinitamente maravilhoso, pois possui a grandeza
da comunicação natural e cultural.
Nos cumprimentos sociais, ao longo do dia, as frases são pequenos trechos de palavras que
unem sons, às vezes, suaves, outras vezes, com bastante entonação, combinados com olhares
e acenos repletos de afetividade. Aí que está o núcleo da convivência, que em outros espaços
mais urbanizados, de cidades grandes, as frases são amplas e as palavras completas, porém, os
órgãos de sentidos não participam, olhares e gestos quase ocultos.
Lembro-me que, na minha juventude, a gente cumprimentava dando dois beijos, um em cada
lado da face, já nas grandes cidades, o costume era apenas um. E no Nordeste, três beijos,
refletindo o intenso calor afetivo do povo que vive naquela região.
Na recepção ao amigo, ao parente, a casa toda é oferecida sem necessidade de assinar um
contrato. Passa pela confiança e amizade, a licença para se sentir como se estivesse em sua
própria casa. A porta sempre está aberta. Pode entrar, sentar, comer, beber e sorrir. “A casa é
sua”, diz outro poeta.
E quando vai embora, o visitante leva consigo os momentos de vida verdadeiramente vivida,
com calor irradiante de felicidade.

Lembro-me daquela história onde um executivo e empresário convida o pescador a planejar
um grande negócio para ficar rico, a partir desse conhecimento adquirido na prática da pesca
caipira, baseada no peixe de cada dia, sem acumulação. O caipira pescador responde
prontamente: e depois, para viver feliz, só terei trinta dias por ano, como o Senhor, para visitar
esse paraíso, é isso? Então, não quero. Fico aqui, onde sou feliz o ano todo.
E quantas vezes me banhei no corgo, narramos estórias de pesca no corgo, em cima da
pinguela.
Era comum minha amiga de Ribeirão Preto me convidar para passar de lá e tomar uma cerveja
em sua casa.
Não tinha nenhum receio em dizer nóis vai e nóis vem e tudo estava muito bem. O importante
é que nóis alegrava vendo a passagem do trem, e na estação, receber os primos com a
charrete estacionada ao lado da famosa fonte.
Na porta da sua casa, com a bassôra na mão, Madrinha Tereza recebia um biête da comádi
perguntando se tinha pumada para curar berruga. Respondia ao mininu que só tinha miorá,
para dor de cabeça. E sem fazer cócica, sorria gostosamente, vendo um largato passar em
cima da sua chinela. Ali perto, um passarinho avoava, talvez um passo preto. E na volta para
casa o meninu trupicô, pois, o cardaço da sua precata estava desamarrado.
Já em Araçoiaba da Serra, Dona Clotilde exclamava: Tá chovendinho, che, assim não vai encher
a caixa d’água. Varte, trais o barde correndinho. O de prástico, porque o outro seu pai deu
embora.
Arco, tarco e verva não faltam nas barbearias de Taubaté e outras localidades. E a Matilde
disse que em Valparaíso não falta nem navaia.
Precisava reforçar a ação dizendo subir pra cima, descer pra baixo e prolongar os erres dos
verbos, quase que entoando uma melodia: cantarrr, procurarrr.
Essas falas, esses termos próprios de cada lugar não impediam a valorização da língua
normatizada que os mais jovens recebiam na escola e como um parto, tinham que eliminar o
vocabulário tão natural em suas vidas, mas que não tinha valor nenhum para um florescer
profissional no mundo moderno.
Que pena, assim vai se perdendo esse conjunto cultural que passa a ocupar espaços tão
somente nos palcos e telas, transformando-se em arte. Porque na arte a cultura nunca é
abafada e sim reconstruída, contada e recontada.
E quem sabe, no mundo de reflexão, o preconceito linguístico ainda possa ser eliminado, assim
como outros preconceitos que ainda afetam a essência da sociedade atual, que trazem tão
somente o prejuízo para a evolução da Humanidade.